domingo, 20 de dezembro de 2009

Cota Diária

Foto de Fabiana Santinelli


José Geraldo era um maluco que dava lucro. Nesse mundo de desassossego e de sinuosos apelos, ele consumia seu próprio veneno feito de dor e alegria em pó misturado com água viva da chuva fria de uma manhã remota em São José dos Campos. Lembrava com precisão do tom dos pelos do seu primeiro cachorro roubado, mas não se lembrava direito do rosto do seu pai sempre atrás do jornal segundas intenções e na página três um pouco de emoção policial do tipo "o que fizemos com os nossos filhos". Não ensinamos o principal: querer nada, ser só si, ver e voar como o vento batendo na porta de Deus. José Geraldo mantinha suas tolas idolatrias, desejos vulgares e um orgulho ressentido requentando todas as tardes. É claro que isso não era pra ele algo solene, talvez ritualístico, mania mesmo, para se proteger de sua própria liberdade animal. Quando dizia o que pensava gastando sua cota diária de maldade sentia-se cansado e tentado a sair buzinando suas qualidades feito um grande idiota. Talvez isso verdadeiramente se desse. Moderno, Zé Geraldo desceu a rua não imaginando nada, apenas sentindo uma profunda paz que nasce da lama, que vem do orgulho, a paz que só os mais sujos e os mais nobres podem sentir. Sentiu sem entender. Sorriu e estralou os dedos do pé.

Ariel

Um comentário:

Clara Tadayozzi disse...

Acho incrível o jogo que você faz com as palavras. Altera uma letra aqui, outra ali e assim faz palavras quase iguais, mas totalmente diferentes. Adorei o título referindo-se ao nome.
Um texto realmente digno de seu autor.
No bom sentido, invejável.