quinta-feira, 24 de junho de 2010

Microondas

Cobrava explicações
Coerentes

Daquela noite branca

Nada restou na manga
Nenhum coelho na cartola
Enquanto rostos cansados
Dormiam tranquilos

No coração da tarde

Sonhavam
Voavam
Viviam

Essas pessoas espertas seguras convincentes
Ou simplesmente
À altura
De uma metralhadora

Nuvens de som
Se formavam num céu instável
Contra um azul perfeito
Da cor do amanhã

O inverno era opaco e precipitado
No entanto era terça dia de pagar
A luz
E as horas eram horríveis

Ariel Pádua

“Ou, se preferirem, há emoção quando o mundo dos utensílios desaparece bruscamente e o mundo mágico aparece em seu lugar.”

Jean-Paul Sartre

terça-feira, 8 de junho de 2010

Fome de Beleza


Tênis branco, calça vermelha, jaqueta marrom, cabelos e olhos castanhos, maravilhosamente comuns.

Fedia a cigarro, os joelhos ralados, a risada boba, o ar de reizinho.

“A burguesia transformou todos em pequenos burgueses” - disse, do alto da sua beleza adolescente.

Beleza radiante, quase prepotente, com ares de estudante francês.

Enquanto gelos gigantes derretiam morbidamente em copos de caipirinha...

Irã descrevia seu tédio com todas as metáforas pobres que sabia.

Ele não estava entre os vinte meninos mais inteligentes da Califórnia, mas sua euforia tinha gosto de vida.

Um dia, contou a história de Wanda: “Era uma neguinha manca, daquelas que fediam a perfume duvidoso. Parisiana!, chamava o tal perfume...”.

Do banheiro – com a porta aberta – eu ouvia a história engraçada e maldosa, antes de apertar o botão da descarga.

Pensei, fechando o zíper, que o amor – única palavra sem sinônimo – bota o tédio abaixo de zero e arranca o homem do seu aquário.

E a beleza, essa só vale, se for roubada para ser habitada.

Ariel Pádua

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Coleção


Página 57, percebeu que o livro tinha profundidade, alguma alma, certa originalidade, possíveis dimensões sociológicas, mas era chato, bem chato.

Cada palavra, mal colocada, tinha uma sombra com vida própria. Tudo devidamente coberto por poeira.

A mala era pesada como sua vida. E como um gato, de pé, com fé, lambia as próprias feridas.

Será que vai chover? Até quando Israel usará o passado e o cinema para justificar o presente? A dor branca dói mais?

Enquanto Thor latia carente e pardais caiam duros do céu azul-céu como meteoritos...

Bichas suburbanas, chineses, putas, ciganos e corretores de seguros celebravam o Dia do Trabalho.

Todos procuravam um milagre representado quando o real é fantástico demais para ser verdade.

O álbum de figurinhas da Copa fervia, ao sol, no banco de trás do Fusca laranja.

Latia Thor, carente, para pequenos garotos que sorriam malvadinhos com seus estilingues improvisados.

Sombra de mim, caricatura quase cicatrizada, fechei o álbum incompleto, botei na terceira gaveta.

E dormi sem respostas.

Ariel Pádua